As duas mortes do café
Thiago Sousa
O grão de café é um fruto e que classifica-se, segundo os botânicos, como não-climatérico porque sua plena maturação ocorre exclusivamente enquanto estiver ligado à planta.
Uma vez retirado, exatamente no momento da colheita, ele deve passar pelo processo de secagem para que, ao ser armazenado, mantenha as substâncias de aroma e sabor que caracterização sua bebida.
Há um paralelo notável, aqui, entre o café e o cacau.
Como se sabe, o cacau, quando foi apresentado pelos maias a Cristóvão Colombo no início do Século XV, era consumido na forma de uma bebida que tinha o nome de Tchocolath. Obviamente que a substância theobromina foi decisiva ao cativar o famoso navegador devido ao seu efeito junto ao centro do prazer localizado no cérebro, semelhante ao que alguns ácidos clorogênicos do café provocam.
Pelas mãos do conquistador Hernán Cortez, as primeiras sementes do cacaueiro chegaram à Europa, mais precisamente no corte espanhola, passando a ser, rapidamente, uma bebida fashion entre a aristocracia. Somente por volta de 1780 que as primeiras barras de chocolate foram fabricadas, cujas lascas eram muito disputadas.
O que é o chocolate, afinal?
Nada mais do que o produto da torra dos grãos de cacau, após um cuidadoso processo de secagem em sua origem. Um processo de secagem bem conduzido mantém todas as características sensoriais dos grãos de cacau, o que faz com que determinadas notas de sabor possam ser peculiares de um determinado local de produção. A grande diferença, em termos químicos, está no fato de que o chocolate possui um teor de gordura muito maior do que o café.
Os grãos de café, pelo fato de apresentarem uma notável composição de substâncias de aroma e sabor, merecem um digno tratamento na secagem.
Para se ter uma idéia mais clara do que é essa complexidade de aromas e sabores a que me refiro, observe a figura abaixo, denominada Roda de Aromas e Sabores, da SCAA Specialty Coffee Association of America:
A roda à direita é expandida, sendo que em sua parte externa direita ficam evidenciados os principais aromas, cada qual ligado a um grupo que pode ser de natureza Enzimática, de Caramelização do Açúcar ou de Destilação Seca.
Para que essas substâncias aromáticas sejam produzidas no grão de café, é imprescindível que a planta receba os nutrientes necessários a tempo e em quantidade. Além disso, cada condição geo-climática permitirá que um ou outro grupo de notas aromáticas acabe prevalecendo, criando as características sensoriais de cada bebida.
Mas, é importante, compreender que, como nos perfumes, as notas aromáticas são delicadas e devem receber atenção especial para que elas se mantenham. Por exemplo, frascos de perfume não ficam diretamente ao sol, nem em ambientes quentes. Se isso ocorrer, lá se vai o que o perfume tem de mais caro…
O grão de café também precisa receber essa mesma atenção.
Depois de seco, nada de luz direta, nem de calor. Estes dois elementos são mortais para o café. Por isso é que, antes do benefício, talvez a melhor forma de conservar as características sensoriais do café cru é em tulhas. Se possível, beneficiar somente quando houver a necessidade.
Uma vez beneficiado, as condições de armazenagem são fundamentais para que o nosso precioso grão não pereça.
Lembre-se, ele é um elemento vivo. A umidade e temperatura controladas são a chave!
O teor de umidade do grão define sua durabilidade no armazenamento, pois quanto mais úmido mais propício para o seu envelhecimento e morte. Na realidade, quimicamente, envelhecemos porque as reações de oxidação acabam prevalecendo sobre as outras, fazendo com que nossa manutenção de vida se deteriore gradativamente. Portanto, há um ponto ideal de finalização na secagem, em torno de 11% a 11,5% para os Naturais e de 10,5% a 11,0% para os CDs.
Este é o raciocínio: “Mais umidade interna do grão, maior probabilidade de reações de oxidação e, por isso, tempo abreviado de vida. Menor umidade do que a ideal, provavelmente, as substâncias aromáticas, devido à sua volatilidade, já se foram.”
Mesmo assim, ou seja, que os grãos de um lote de café tenham sido corretamente secos, podem sofrer alterações durante sua fase de descanso nos armazéns, ainda mais que estes, aqui no Brasil, estão localizados na faixa tropical do nosso planeta.
O que isto significa?
Elevadas temperaturas no verão, geralmente acompanhadas por intensas chuvas do período que vai de novembro a fevereiro, propiciando o risco de aumento da umidade do grão e que, caso ocorra, promove a deterioração de seu perfil de bebida. Por isso, quase sempre os cafés remanescentes de cada safra apresentam um claro sabor amadeirado, que nada mais é do que o efeito na xícara do que restou do grão: celulose e substâncias não voláteis, como açúcares, alguns ácidos e alcalóides.
Esta é a Primeira Morte do Café.
Caso um lote tenha seguido para uma torrefação ainda com os grãos com toda sua exuberância de aromas e sabores, o processo industrial de torração pode definir “uma outra forma de morte do grão de café”.
O processo de torração envolve uma série de reações químicas provocadas pelo aumento de energia interna do grão graças ao calor absorvido.
Tal qual no processo de secagem, inicialmente o grão de café absorve o calor que o equipamento de torra libera, e inicia pela volatilização de algumas substâncias. Por isso, no início da torra, o aroma de cereais é bastante intenso.
Em seguida, começa a quebra das moléculas de carboidratos, que são moléculas longas de açúcares. Ao se transformar em moléculas de cadeia mais curta, o aroma na torra fica adocicado, pois há uma correlação inversa de que quanto mais curta é a cadeia de um açúcar, mais doce ele é e, portanto, quanto mais longa a cadeia, menos adocicado.
Finalmente, inicia-se a reação de pirólise (piros = fogo, calor; lise = separar) dos açúcares de cadeia curta, resultando em água mais gás carbônico. É quando se ouvem os pops no torrador, que é o barulho típico das células dos grãos de café sendo rompidas pelo aumento da pressão interna.
É que a água, que sem dúvida a mais divina das substâncias da Natureza, possui um elevadíssimo coeficiente térmico, ou seja, ela precisa de muita energia para mudar de estado físico, no caso passando do líquido para o vapor. Nessa mudança, ouvem-se os estouros, ao mesmo tempo em que se observa que a fumaça fica mais espessa e esbranquiçada, característica do vapor d’ água mesclado com o gás carbônico.
Aí, cada Mestre de Torra define o seu ponto final através da coloração do grão, normalmente verificado pela Escala Agtron. Nesta escala, que vai de zero a cem, grãos mais claros tendem ao ponto #100, enquanto que os mais escuros, quase negros, tendem ao zero. Usualmente, para o espresso, o ponto mais empregado é o Agtron-SCAA #55 ou #60.
Após o resfriamento, os grãos torrados seguem para um compartimento de descanso, pois, na realidade, a reação de pirólise continua, apenas em velocidade muito menor. Esse descanso varia de 18 a 24 horas, dependendo do Mestre de Torra.
É porque o gás carbônico continua a sair do grão.
Somente após o período de descanso é que o grão é embalado. Se estiver em grãos, destino ao serviço de espresso, o desprendimento do gás carbônico é mais lento e, por isso, a válvula aromática, que na realidade funciona como uma porta de sentido único de fluxo, é imprescindível.
Caso for torrado e moído, para o tradicional cafezinho, praticamente não há mais desprendimento de gás carbônico, pois as finas partículas de café moído têm grande área de contato com o ar, acelerando esse processo.
Logo, a Segunda Morte do Café ocorre quando o grão, inteiro ou moído, não mais desprende gás carbônico. Ao preparar o seu cafezinho, o sabor de ranço torna-se evidente, assim como o aroma perde suas características de frescor.
Observe-se que, conforme o ponto da cadeia produtiva, o tempo de vida do café altera-se dramaticamente:
- quando cru, o grão permanece vivo ‘por semanas;
- quando torrado em grão, sua vida pode durar dias;
- moído, o grão de café mantem seu frescor por minutos;
- na xícara, não deve passar de poucos momentos (ainda mais se for um excelente café!).
Assim, tanto quando cru quanto torrado, o grão de café tem na forma de sua armazenagem o principal fator para manutenção de seus atributos de bebida, mantendo “vivos” os aromas e sabores que coroam o trabalho de uma safra.