A água persistente
Ensei Neto
Num treinamento especial que ministrei recentemente, uma dúvida aparentemente atroz surgiu entre os participantes, todos com graduação em engenharia de excelentes escolas, alguns com mestrado inclusive: comentaram que encontraram em alguns textos, alguns considerados referência no mercado, que “a desidratação das sementes poderia se estender entre 150ºC e 180ºC.”
Como já havia lido a literatura citada, foi bastante confortável para comentar sobre essa incrível afirmação. Afinal, como se sabe, a água, nas condições normais de pressão (1 atm), evapora a precisos 100ºC.
Mas, como é que a água poderia persistir líquida a estupendos 50ºC acima de seu ponto de ebulição?
A torra da semente do cafeeiro é um processo fundamental para que se possa fazer a extração e, finalmente, se deliciar com sua bebida. É uma transformação que envolve aspectos físicos e químicos que se cerca de muita magia, porém com rigor científico como qualquer fenômeno da natureza.
Costumo dividir o processo de torra em 2 fases: uma, a Fase Física, quando ocorrem apenas eventos de natureza física, e a Fase Química, quando as reações que caracterizam a torra propriamente acontecem.
A Fase Física, que chamo de Fase “F”, basicamente é quando ocorre a desidratação da semente. Quando a fruta do cafeeiro é colhida madura, o teor de água corresponde a aproximadamente 50% em peso, não muito diferente na semente.
Segue-se a secagem da semente para que ela fique com umidade entre 10,5% m/m a 11,0% m/m, que é a ideal para o seu período de armazenamento. Com essa umidade, a semente entra em modo “dormência”, com baixa probabilidade de morrer antes do tempo.
Sim, a semente tem de continuar viva para ser torrada. Se estiver morta, o sabor resultante é sempre pífio, prevalecendo o gosto de celulose. Caso queira saber como é esse gosto, pegue um guardanapo de papel e deixe na boca, umedecendo. É esse o tal gosto da semente que teve morte morrida...
Uma secagem bem conduzida pelo cafeicultor tem como resultado a umidade, que recebe o nome de Água Livre porque está livre, leve e solta entre a estrutura celular da semente, localizada na parte central, como apresento nesta foto.
A parte mais clara da semente demonstra que o teor de umidade é muito menor, de modo que a possibilidade de oxidação se torna mais remota.
Lembro que “o que nos dá a vida, também nos tira.”
O envelhecimento, que inevitavelmente leva à falência dos nossos órgãos, nada mais é do que um progressivo processo de oxidação ou ação do oxigênio, que é o mesmo que, ironicamente, nos faz viver. É, o preço para viver é alto...
Nas condições normais de armazenamento da semente, a água livre está no estado líquido. E outro detalhe importante: essa água é simplesmente água, ou água pura. Portanto, sabe-se tudo sobre suas características e, também, como é o seu comportamento em diferentes momentos.
No processo de torra, pode-se admitir que há um fluxo contínuo de energia que é levado pelo ar aquecido ao interior do cilindro deitado, levando-se em conta o modelo mais utilizado no mercado. Neste caso, estamos considerando que o cilindro possui isolamento térmico, de forma que o mecanismo de troca de calor predominante é a Convecção.
Para refrescar a memória, a convecção é a troca de energia térmica (ou calor, simplificando...) que ocorre entre dois fluidos. Essa troca de calor se torna ainda mais eficiente se os fluidos estiverem em sentidos contrários, isto é, um indo ao encontro do outro. Essa é a grande idéia que justifica o fato de a maior parte dos torradores serem cilindros deitados.
Apesar de ser muito complicado fazer cálculos para se projetar um cilindro deitado, com as pás internas bem desenhadas e uma correta velocidade de giro desse cilindro, o conjunto funciona incrivelmente bem, de modo que as sementes do cafeeiro se comportam como um fluido, que passa a trocar calor com o ar quente, que neste caso faz o papel de outro fluido, vindo do queimador.
Dentre todas as substâncias que compõem a semente, a água apresenta uma característica que é muito importante: é disparado quem tem a maior capacidade de absorver energia. Quando o ambiente começa a esquentar, é a água livre quem primeiro absorve essa energia.
À medida que a água livre vai se aquecendo, um outro evento físico começa a acontecer: ela começa a se movimentar pelos vãos existentes entre as células, que recebem o nome de interstícios. Como é um caminho tortuoso e relativamente estreito, o fenômeno que ocorre é o que se denomina de difusão por capilaridade, turbinada pela diferença de temperatura, entre outros mecanismos.
A água livre começa a se concentrar na superfície da semente, quando adquire tonalidade mais escura (ao que dou o nome de “efeito camiseta branca molhada”). Só que o ar bastante aquecido (entre 400ºC e 500ºC, a depender do equipamento) transfere energia suficiente para a água que atingiu os mágicos 100ºC (a 1 atm), iniciando a ebulição.
Sendo a semente um sistema aberto, toda sua água livre se evapora. Ao final deste evento, é que se inicia a Fase Química da torra, quando ocorrem as reações químicas.
Mas, e a água que foi detectada a mais de 150ºC?
Se há uma situação em que podem ocorrer eventos químicos que apresentam como produto de reação a Água, uma em particular é que pode fornecer essa água passível de ser detectada: a Pirólise.
A Pirólise é uma reação de combustão ou decomposição de açúcar e, como tal, tem como produtos gás carbônico, água e muita energia. É uma reação que pede muita energia para ocorrer, assim como libera outro tanto para o ambiente.
C6H12O6+ 6 O2 =======> 6CO2+ 6H2O + Energia
Modernamente, sabe-se que essa água, detectada em ensaios realizados nos anos 1990, certamente é decorrente da reação de pirólise.
A evolução do conhecimento faz com que novas perspectivas sejam utilizadas para compreender um mesmo fenômeno, daí a atualização técnica ser tão importante.