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São Paulo

The Coffee Traveler by Ensei Neto

CIÊNCIA

Filtering by Tag: café

Sobre sistemas, métodos e tirashizushi

Ensei Neto

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Um dos meus pratos prediletos da cultura dos meus avós, que têm origem japonesa, é o Tirashizushi, que é arroz temperado especialmente para o sushi com uma cobertura de pedaços de diferentes peixes e frutos do mar servidos numa tigela.
Esse prato era, originalmente, feito com as partes não aproveitadas para o sashimi, que são fatias de peixe cru cirurgicamente preparadas, ou o clássico niguirizushi, composto por uma porção de arroz temperado delicadamente compactado com uma fatia selecionada de peixe cru. Como todos os pratos conhecidos, sofreu uma natural evolução, e hoje é um prato que ganhou os mais nobres ingredientes com o rigor estético nipônico.

Tirashizushi. Foto: Ensei Neto/Arquivo Pessoal.

Tirashizushi. Foto: Ensei Neto/Arquivo Pessoal.

O arroz é a base desse grande prato. A variedade típica da culinária japonesa tem como seu correspondente no Brasil o catete, que é redondo, plantado em tabuleiros, portanto, sob inundação. Os dois tipos mais utilizados desse importante cereal podem são, além do catete ou redondo, os longos finos, também conhecidos como arroz agulhinha, que é o preferido pela grande maioria dos brasileiros.

O tipo agulhinha tem como característica após o seu cozimento formar uma estrutura molecular que lembra algo gelificado, o que explica o seu comportamento “soltinho” no prato. É possível ser frito em óleo porque sua capacidade de reter água é muito baixa.
Os redondos, por sua vez, depois de cozidos mantém estrutura amorfa, ou seja, ficam amolecidos e, como consequência, o amido ganha quase consistência de cola, que o pessoal por aqui dá o apelido de arroz “juntos venceremos”. O Arboreo, “primo” italiano da variedade Hoshi Hikari, japonesa, é indicado para o preparo de risotos porque também possui excelente capacidade de retenção de água.

Preparar o shari envolve método, que nada mais é do que seguir fielmente um roteiro de preparação: lavar o arroz, deixar por um tempo sob água, cuja quantidade é calculada a partir da capacidade de retenção do arroz escolhido, cozinhar, fazer o resfriamento em uma cuba de madeira, que absorve eventual excesso de água, para, quando se atingir a temperatura ideal, adicionar a solução com o mágico tempero e fazer a mistura delicadamente. Cada cozinheiro tem sua receita particular, sendo a base sakê, açúcar, sal e vinagre, fundamental para facilitar o trabalho manual com o arroz.

Observe que existe uma metodologia ou, digamos, uma regra que é seguida pelo sushiman ao preparar o arroz que fará composição com o sushi e até o tirashizushi. Um ou outro profissional pode fazer variações, porém deve se observar se o resultado se aproxima ou não do original. 

Existem diversos métodos de preparo de café disponíveis no mercado, cada um com os seus equipamentos e materiais que compõem o chamado sistema. 

É muito importante notar que existe, em grande parte, confusão com os conceitos Método e Sistema entre os profissionais do café.  
Quando é feita referência a um método, espresso ou ibriq, por exemplo, entende-se que existe um conceito estabelecido e um roteiro de execução, conhecido também como protocolo.

Para ilustrar, o ibriq, considerado como o primeiro método de preparo de café, é uma infusão e que a solução de água com o pó de café dissolvido sofre ebulição por 3 vezes antes de ser servido. Numa cafeteria, todo esse protocolo deve ficar descrito numa ficha técnica correspondente.

Baristas do Yemen preparando Ibriq. Foto: Ensei Neto/Arquivo Pessoal.

Baristas do Yemen preparando Ibriq. Foto: Ensei Neto/Arquivo Pessoal.

 O sistema é o conjunto composto pelo utensílio e acessórios para a execução do método. Retomando o exemplo do café preparado pelo método conhecido por árabe, turco ou iemenita, o seu principal utensílio é o ibriq, que é um jarro metálico com a boca mais estreita que seu fundo com um cabo para seu manejo junto ao fogo. A geometria do jarro facilita a decantação do pó do café finamente moído após a terceira fervura, tornando o líquido limpo e pronto para servir. 

 No último dia 25 de janeiro, quando a cidade de São Paulo comemorou 466 anos de fundação, foi realizada a 1ª Copa Hario V60 de São Paulo, reunindo um expressivo número de competidores.

O sistema Hario foi apresentado ao mundo barista em 2005 durante a Feira da então SCAA – Specialty Coffee Association of America, realizada em Seattle, WA. Foi uma feliz combinação de fatores que levou esse sistema ao rápido estrelato já naquele evento: o fato de Seattle ser quase uma ponte aérea com Tokyo, fez com que a maior presença de japoneses naquela feira ocorresse; foi a celebração do acordo de cooperação entre as associações SCAA e SCAJ, esta do Japão; e, como cereja do bolo, o campeão do WBC foi o barista japonês Hiroyuki Kadowaki, que empregou em seu blend um brasileiro Cerrado Mineiro e um etíope Yirgacheffe.

O sistema Hario V60 é composto por um porta filtro que é um cone invertido com, digamos, o bico cortado, criando um enorme furo. Tem estrias em discreto vórtex para facilitar o escoamento do café filtrado. 
O cone tem um ângulo entre sua lateral e um eixo vertical de 60º (que no plano assume a forma de um triângulo equilátero) e, por essa razão, tem no manual de instruções do V60 a indicação de se verter a água no centro para que o pó de café se acomode nas laterais do filtro, onde ocorre a filtração propriamente dita.

Loucos por café (a partir da esquerda): Felipe Machado, Fabio Suzaki, Tulio de Souza, Luiz Ligabue e eu, Ensei Neto.

Loucos por café (a partir da esquerda): Felipe Machado, Fabio Suzaki, Tulio de Souza, Luiz Ligabue e eu, Ensei Neto.

O vencedor da competição foi o barista paraibano Túlio Fernando de Souza, que seguiu à risca a forma de uso recomendada pelo fabricante, uma vez que o sistema era o Hario V60. 

Método Hario V60 do barista Túlio de Souza: segundo o protocolo Hario. Foto: Túlio de Souza.

Método Hario V60 do barista Túlio de Souza: segundo o protocolo Hario. Foto: Túlio de Souza.

É claro que cada pessoa pode adotar uma “licença poética” ao utilizar esse sistema ou outro qualquer, porém, no caso de uma competição, pesou o fato de que, além do estudo de como dosar o fluxo de água para se obter a mais eficiente extração dos melhores sabores do café, o Túlio se destacou entre os competidores ao atender fielmente à metodologia ou protocolo do método.

A lição que fica é esta: preparar café, de forma profissional, exige conhecimento, disciplina e metodologia para que os resultados sejam consistentes.

 

A altitude, a densidade e o casco duro

Ensei Neto

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O cafeeiro é originário das florestas da Etiópia, humildemente instalado debaixo das sombras de grandiosas árvores. De lá, atravessando o Mar Vermelho, sobe as impressionantes montanhas iemenitas, até cordilheiras de fazerem perder literalmente o fôlego  e que integra a paisagem de Jabal Bura.
Estou falando de grandes altitudes e altitudes ainda maiores!

Há uma crença de que as sementes dos cafeeiros de grande altitude têm maior densidade e que suas paredes celulares são mais duras, o que torna o seu processo de torra mais exigente em termos de quantidade de energia. Ou, simplesmente, há que se usar de “mais fogo”...

Para melhor compreensão do que significa a “densidade da semente do café”, há que se considerar alguns aspectos básicos sobre o funcionamento do cafeeiro, conjunto de mecanismos conhecido por Fisiologia, juntamente com a estrutura química resultante. 

Deve ser lembrado que o desenvolvimento da semente está perfeitamente sincronizado com o da fruta do cafeeiro, que tem o que se chama de ciclo anual. Cada substância formada ao longo desse ciclo, que obedece uma linha lógica de demanda de energia, contribui para a determinação da densidade da semente. 


De forma simplificada, a densidade da semente é equivalente à média ponderada das substâncias que a formam. Por exemplo, a densidade da Glicose é de 1,54 g/ml, o que nos permite inferir que quanto mais açúcar houver na fruta e, por consequência, na semente, maior será a densidade desta. A partir desta constatação, fica claro o porquê se deve colher preferencialmente apenas frutas maduras.

 Frutas saudáveis ocorrem em plantas sadias e que sofreram pouco estresse. Cafeeiros que levam uma vida muito agitada, com pouca trégua entre muitos ataques de insetos, ou cheia de aborrecimentos e doenças, definitivamente têm frutas com potencial medíocre devido ao menor acúmulo de açúcar.
Por outro lado, a altitude do cafezal pode interferir positivamente na formação de reserva de açúcares. 

A atmosfera terrestre, a grosso modo, é uma combinação de Oxigênio e Nitrogênio, sendo que ao nível do mar a proporção é de 29:71. Quanto maior a altitude, essa proporção se modifica dramaticamente, pois o oxigênio é mais denso que o nitrogênio, de forma que este último aumenta consideravelmente sua participação na atmosfera. 

Com menor quantidade de oxigênio disponível, o processo respiratório das plantas tende a ser mais lento como forma de adaptação. A respiração lenta faz com que o ciclo da fruta se alongue naturalmente, de forma que a acumulação de açúcares se torna mais eficiente. 

Ao final, frutas adocicadas têm sementes com mais açúcares, que, como conseqüência, tendem a apresentar maior densidade do que outras de plantas cultivadas a menor altitude.

Em relação à parede celular das sementes ficar mais “dura” em razão da altitude pode-se dizer que tende a ser mais uma lenda rural...
Os habitantes de locais a grandes altitudes são, sim, preparados para baixas temperaturas e restrição de oxigênio decorrentes da menor pressão atmosférica.

Estruturas celulares tendem a ganhar maior resistência quando são expostas à maior pressão, como é o caso de animais que habitam o fundo do mar. A cada 10 m de profundidade, dobra-se a pressão em relação à que existe ao nível do mar. É por isso que os chamados seres abissais tem estrutura e arquitetura para poder suportar essas pressões elevadíssimas. 

O principal efeito da altitude é, sem dúvida, a possibilidade de um perfil de ácidos de maior complexidade se formar na semente, expressando-se ricamente na bebida. Além de intensidade acima do normal do ácido cítrico, vêm junto o ácido málico e, eventualmente, o fosfórico. 

Posso afirmar que essa combinação na xícara fica incrível!

A torra do café e a acidez

Ensei Neto

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Convivendo com verdadeiros mestres do churrasco no Brasil, Uruguai e Argentina, construí um aprendizado maravilhoso sobre carnes, fogo e manejo. 
Parece trivial, no entanto há um profundo tratado técnico sobre a escolha das carnes para cada finalidade, por exemplo, entre um cozido e um grelhado. 

Naturalmente, tudo começa pela seleção da raça do gado, que pode ser decisiva para um excepcional resultado no prato. O gado zebuíno tem como característica acumular gordura na parte externa das peças, como pode ser observada num clássico contra filé, enquanto que raças como Angus também acumulam gordura no tecido, formando desenho cujo contraste lembra o do mármore, daí receber o adjetivo “marmorizada”. Nesse quesito, o gado japonês Wagyu é considerado por muitos especialistas o melhor do mercado.

Para preparar um cozido de panela, a escolha recai para carnes fibrosas como o músculo, enquanto que as mais irrigadas, como a sempre magnífica dupla filé e contra filé do corte chamado Bife Ancho tem de ir para a grelha sobre fogo forte. A inversão leva a resultados medíocres nos sabores e texturas.

Turma de Coffee Hunters 2016 torrando cafés para avaliação sensorial.

Turma de Coffee Hunters 2016 torrando cafés para avaliação sensorial.

Um dos temas mais discutidos ultimamente entre os coffee experts de plantão tem sido sobre a acidez do café. Algumas pessoas acreditam que a acidez de um determinado lote de café é determinada na torra, tanto para que se ressalte quanto para se minimizar sua presença. Porém, da mesma forma que no caso das carnes, tudo depende para o que você pretende fazer. Em uma linha mais direta, o que  importa é, como sempre, a matéria prima.

Para uma melhor compreensão do que estou comentando, é fundamental saber como os ácidos são formados na semente do cafeeiro. Existem 4 ácidos que podem fazer parte da composição das sementes: o Cítrico, que é o mesmo do limão e da laranja; o Málico, encontrado também na maçã e na pêra, e que quando percebido na bebida é um sinalizador de cafeeiros plantados em grandes altitudes; o Lático, fundamental numa coalhada e no iogurte, que é incorporado na semente em processos fermentativos; e, finalmente, o Fosfórico, que faz parte da formulação das bebidas de cola, sendo característico de cafés de grande altitude do Kenya.

Existem outros ácidos que podem ser encontrados na bebida, porém em grande parte são defeitos ou que simplesmente se decompõem durante o processo de torra.

O cítrico é único ácido presente em 100% das sementes do cafeeiro (e dos seres vivos em geral), sendo produzido através da respiração.

Esse processo é conhecido como Ciclo de Krebs e acontece em estrutura das células conhecida por Mitocôndrias. O que basta saber sobre esse emaranhado de reações químicas e bioquímicas é o fato de que tudo começa com uma molécula de Glicose (lembre-se que este açúcar é o combustível dos seres vivos de nossa Natureza) sob regime aeróbico, ou seja, que exige a presença do Oxigênio, com o objetivo de gerar energia para as funções de vida.

Assim como nós, o cafeeiro pode se ressentir do calor excessivo ou do frio intenso, sendo que o calor excessivo é o principal fator estressante. 
Você já percebeu que quando o dia está muito quente, ficamos mais cansados? 
Na falta de um ar condicionado para nos refrescar, o cansaço vem rapidamente...
Isso porque boa parte da energia do nosso corpo é usada para a manutenção de nossa temperatura corporal, que é em média de 36,6ºC. Ter um equipamento de ar condicionado é ótimo, mas tem o seu custo. No caso dos seres vivos, a conta tem de ser paga também para que a temperatura se mantenha estável, daí o cansaço extra.

É por isso que devem ser feitos estudos agroclimáticos para a seleção de locais de plantio de diversas culturas, incluindo-se o café. Caso a conclusão de que num determinado local as plantas ficarão muito tempo estressadas, não vale a pena prosseguir, pois como resultado o produto certamente será de qualidade inferior.

Resumidamente, se as sementes são de lavouras cujas plantas passam por mínimos momentos estressantes, terão como acumular ácido cítrico em maior quantidade e, portanto, apresentar maior acidez na bebida. E, por tabela, também haverá um excelente perfil de açúcares formado.

No processo de torra, cada evento químico ou bioquímico é perfeitamente definido e, por isso, mapeado, que é o princípio que aplico nos cursos de Ciência da Torra do Café.  Complementarmente, fazemos a Calibragem Sensorial da Acidez com modelos calculados matematicamente a partir da concentração de ácido cítrico em diferentes momentos do processo de torra. 

As propriedades físico químicas do ácido cítrico, por exemplo, podem ser encontradas em livros acadêmicos ou num aplicativo de Inteligência Computacional que recomendo fortemente, o Wolfram Alpha.
Por exemplo, você encontrará numa consulta esta importante informação: o ácido cítrico se decompõe a 175ºC nas Condições Normais de Temperatura e Pressão/STP. Ou seja, quanto mais tempo o processo de torra do café permanecer acima dessa temperatura, fica claro que uma notável diminuição do ácido cítrico ocorrerá. 
Muitos profissionais da torra acreditam que para se evidenciar a acidez de uma bebida basta finalizar o processo utilizando a visualização da cor externa das sementes, no ponto chamado de “torra clara”.

Gráfico Visual vrLink.

Gráfico Visual vrLink.

A bem da verdade, a contribuição da cor superficial das sementes é menor que 10%, portanto, é com a coloração da estrutura interna que define a cor da torra, que pode ser medida pelo sistema SCA-Agtron, entre outros, que utiliza uma escala de cores que vai de #95 a #25, sendo a de valor numérico maior mais clara, enquanto que a de menor valor, mais escura. Essa verificação de cor deve ser feita com as sementes torradas moídas finamente e compactadas, pois os sistemas de análise de cor se baseiam nas freqüências de luz refletidas por uma superfície plana. 
Na maior parte das vezes, uma torra excessivamente clara é simplesmente subtorrada, pois, apesar de apresentar bebida com acidez cítrica brilhante, há um desequilíbrio com a formação de açúcares, resultando na presença do gosto de celulose (papel molhado) quando o café esfria.

A manutenção da acidez da bebida está, sim, ligada à técnica de torra empregada. Se a acidez percebida for a licorosa, tanto melhor!

A acrilamida e o café

Ensei Neto

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“Somos o que comemos e bebemos” é uma clássica frase quando se procura demonstrar vínculos entre alimentos e bebidas e seus efeitos sobre nossa saúde. Com a evolução técnica, à luz das revisões e avanços científicos, de tempos em tempos, a posição sobre um determinado alimento e seus benefícios ou malefícios pode variar.

Com o café, não é diferente.

A bebida mais consumida depois da água, o café, passou a receber muita atenção da comunidade médica durante as últimas décadas. O efeito estimulante de seu principal componente, a cafeína, desde o seu primeiro relacionamento com os religiosos do Yemen há quase de mil anos atrás, foi largamente divulgado.  

Em meados do século passado começaram as primeiras pesquisas sobre o efeito do café sobre o nosso sistema digestivo, chegando-se à conclusão, na época, de que era um dos causadores da gastrite. Anos depois, esse resultado foi revisto, pois ficou claro que somente o consumo de cafés de baixa qualidade, com características de bebida Riada, Rio ou Riozona, é que causavam o devastador efeito no estômago.

Sim, beber café de excelente qualidade só oferece benefícios!

Nos últimos anos, beber café se tornou moda definitivamente, embalado pela comprovação dos efeitos benéficos como o antioxidante, gerado pelos compostos clorogênicos, do aumento do poder de concentração e da melhora do desempenho da memória de curto prazo.
No entanto, uma notícia contrária começou a ganhar importância: a formação de um composto que potencialmente pode ser cancerígeno chamado Acrilamida. Este composto levou o café à categoria de vilão quando um juiz da Califórnia, USA, impôs à gigante Starbucks e outras empresas que em seus cafés torrados fosse veiculada a informação de que continham a acrilamida e, por isso, com potencial efeito cacirnogênico. Essa decisão foi tomada porque o juiz entendeu que as empresas não souberam comprovar que o seus produtos não trariam risco à saúde dos consumidores.

Parece que o fim do mundo chegou ao mercado de café!

Só que não!

Primeiramente, é importante entender quimicamente a Acrilamida. 
A Acrilamida é um composto químico da família das Amidas, ou seja, que contém um radical NH2 ligado a um átomo de Carbono que, por usa vez, está ligado a um átomo de Oxigênio. Esse composto pode ser formado pela reação entre uma molécula de Glicose, que é um açúcar redutor, e um aminoácido de nome Asparagina, e que ocorre na fase onde predomina a Reação de Maillard.

A partir de 2002, países europeus iniciaram pesquisas para quantificar em alimentos como a batata frita, batata chips, biscoitos, pães, torradas de centeio e café os teores da acrilamida, pois o processamento desses alimentos tem como ponto em comum o tratamento térmico a altas temperaturas. 
Observou-se que a acrilamida se forma em níveis significativamente elevados nas batatas fritas, enquanto que nas cozidas em água e assadas em temperaturas até 120ºC, seus níveis são bastante baixos.

No caso específico do café, diversos experimentos concluíram que há um pico de formação da acrilamida em etapas intermediárias, principalmente onde há a predominância da Reação de Maillard, enquanto que sua concentração  declina fortemente próximo aos 200ºC por tempo mais longo. É por isso que cafés com torra clara apresentam teores mais elevados de acrilamida do que os de torra mais escura ou tratados a temperaturas mais elevadas por um período maior.

Estes são os pontos mais importantes a serem considerados a partir dos resultados de diversas pesquisas:
1)    Sementes de arábicas e robustas não apresentam significativa diferença na formação de acrilamida.
2)    Os tratamentos agronômicos, ou seja, o tipo de adubação não são significativos na formação da acrilamida.
3)    As torras claras apresentam teores mais elevados de acrilamida do que os de torra mais escura ou quando as sementes são submetidas a temperaturas próximas a 200ºC por mais tempo.
4)    A acrilamida tem seu teor decrescente quando as sementes torradas são expostas ao ar. Portanto, cafés oxidados contém menor teor de acrilamida, apesar do sabor inferior.
5)    Entre o espresso e os coados não foi observada diferença significativa no teor da acrilamida.
6)    Uma das linhas de pesquisa que vem sendo desenvolvida no Brasil é a de se fazer o tratamento enzimático das sementes do café cru para diminuir a concentração da Asparagina.
7)    Apesar de toda a controvérsia, ainda não é conclusivo o efeito carcinogênico da acrilamida no ser humano.

Dessa forma, você pode continuar a beber tranquilamente seu café, procurando sempre por bebidas preparadas com excelentes grãos. Essa é a garantia de que os efeitos benéficos devem ganhar com folga dos maléficos. 

Para se aprofundar no tema, selecionei dois estudos muito abrangentes: uma revisão de autoria de Adriana Pavesi Arisseto e Maria Cecília de Figueiredo Toledo, pesquisadoras da Faculdade de Engenharia de Alimentos da UNICAMP, e um Toolbox da FoodDrink Europe, páginas 46 a 51, entidade que congrega entidades e empresas européias do setor alimentício e de bebidas.

  

A Torra do Café não é Pop!

Ensei Neto

Gráfico vrLink sendo analisado durante exercício no curso Ciência da Torra do Café. Foto: Ensei Neto/Arquivo Pessoal.

Gráfico vrLink sendo analisado durante exercício no curso Ciência da Torra do Café. Foto: Ensei Neto/Arquivo Pessoal.

A vida é uma sucessão de reações químicas e bioquímicas cujos resultados chegam ao ponto de serem considerados verdadeiros milagres. Tudo na Natureza acontece de acordo com condições que a Ciência denomina de Condições Pétreas ou Obrigatórias.
Para que uma reação química possa ocorrer, três são as condições obrigatórias: que os componentes estejam disponíveis; que a proporção entre os componentes esteja correta para que a reação seja possível (Lei da Estequeometria); e que exista energia necessária e suficiente para que a reação aconteça, que é conhecida por Energia de Ativação.

Para se preparar um bolo, por exemplo, essas condições continuam válidas:
a) você precisa ter todos os ingredientes para executar a receita;
b) em seguida, você deve fazer a combinação nas quantidades ideais entre eles; e
c) finalmente, a sua mistura deve ser levada ao forno para assar.

Se todas as condições estiverem satisfeitas, o resultado será no mínimo saboroso!

Uma das crenças mais fortes que existe entre os praticantes da Torra do Café é a audição de uma série sonora conhecida como Crack (como é conhecido nos países do Hemisfério Norte) ou Pop e até mesmo por Pipoco, como esse som é chamado pelos brasileiros como uma referência de processo.
Segundo diversos compêndios sobre Torra do Café, existem dois Pops bem definidos, sendo que o primeiro ocorre por volta dos 180ºC na condição de 1 atm de pressão. Esse som é devido à ruptura da parede celular em razão da forte pressão exercida pelo gás carbônico e vapor de água formados durante a Reação de Pirólise.

A Reação de Pirólise, que  pode ser classificada também como uma reação de combustão, acontece quando a molécula de Glicose se combina com o Oxigênio sob grande quantidade de energia, resultando em Gás Carbônico e Água (vapor), além de estupidamente grandes 15 kJoules de energia (equivalentes a 4,3 watt) gerados por grama de Glicose.  Para se ter idéia do que essa quantidade de energia pode fazer, basta saber que em 1 kg de grãos de café, a quantidade de energia que pode ser gerada permite você ligar um aparelho de 60w por 13 horas ininterruptas!

 

       1 GLICOSE + 6 O2  + Energia ==== > 6 CO2 + 6 H2O + 2.805 kJ/mol

 

A energia necessária para que essa incrível reação aconteça corresponde a praticamente outros 2805 kJ/mol. Essa reação é conhecida também como Reação da Vida porque é fundamental ao possibilitar qualquer atividade de um ser vivo, desde as mais prosaicas às mais sofisticadas, como o ato de simplesmente abrir os olhos, de respirar, coçar a cabeça, andar ou praticar uma maratona e até pensar.
Sim, a Glicose é o combustível que torna viável realizar tudo isso.

Observando a equação que descreve a Reação de Pirólise, fica claro que a proporção de Oxigênio na reação é de 6 vezes em relação à Glicose, o que nos faz concluir que é necessário que no ambiente onde a reação acontece deva ter ar, muito ar disponível!

Num torrador de café, o principal mecanismo de transmissão de calor, principalmente quando o conjunto está em fase mais adiantada, é o de Convecção, que é quando um fluido mais quente aquece outro mais frio. Tecnicamente, considera-se fluido todo material que pode, digamos, se comportar como um líquido, para ficar mais fácil de imaginar, tal qual quando a água em seu estado líquido passa por um encanamento. A massa composta pelas sementes de café, durante o movimento do tambor, adquire comportamento que pode, mesmo que grosseiramente, ser assumido como a de um fluido, vindo a trocar calor com o fluido assumido pelo ar aquecido.

Em equipamento de boa tecnologia, a parede de seu tambor deve estar isolada para que o mecanismo de Convecção seja predominante, pois além de sua maior eficiência, tem-se maior precisão no controle da Convecção do que quando a Condução ocorre. Nesses torradores, é possível dosar a energia para cada etapa da Torra do Café através do perfeito controle da temperatura do ar que passa pelo tambor, trocando calor com as sementes de café. A temperatura do ar aquecido pode variar de 380ºC a 650ºC, a depender da tecnologia do queimador.

A Glicose é uma molécula que pode estar em qualquer parte da semente, inclusive em sua superfície. Imagine que, por obra do acaso, uma  dessas moléculas esteja livre e bela na superfície de uma semente de café vendo um caloroso vento a mais de 400ºC devidamente oxigenado passar. É o que basta: acontece a Reação de Pirólise porque as 3 condições obrigatórias para que uma reação química aconteça foram satisfeitas.

Assim sendo, é razoável pensar que será visível a ruptura da parede celular de uma semente que tenha sido palco dessa impetuosa reação, mesmo que a temperatura do sistema esteja muito abaixo dos 180ºC.

Efeito Hulk. Foto: Ensei Neto/Arquivo Pessoal.

Efeito Hulk. Foto: Ensei Neto/Arquivo Pessoal.

Na foto acima, é possível observar o calombo provocado pelo rompimento das paredes das células que continham Glicose, que se decompôs quando ficou exposta ao caloroso ar aquecido, mesmo com os termômetros registrando temperatura pouco menor que 160ºC. 
Esse efeito, em que a expansão da semente do café decorrente da Pirólise ocorre pontualmente, denomino de Efeito Hulk. Por capricho da Natureza, o som do rompimento da parede celular que deu origem ao calombo não é audível por ouvidos nus; é necessário um sonar ou um amplificador para se captar esse som.
Portanto, para se ouvir o Pop ou Crack é necessário que uma quantidade muito grande de Glicose esteja se decompondo simultaneamente. Esse fenômeno é fiel a um clássico ditado que menciona que uma andorinha só não faz Verão!

Isso quer dizer que tentar ouvir o som do Pop pode fazer com que você perca o bonde da qualidade do café!

Definitivamente, a Torra do Café não é Pop!

Sua pequena fábrica de cafeína...

Ensei Neto

Copo "to go" da Fábrica Café, de Maceió, AL.

Copo "to go" da Fábrica Café, de Maceió, AL.

Preparar café em casa nada mais é do que você ter uma pequena fábrica que produz cafeína.
Sim, você não leu errado!
Tecnicamente, ao preparar um bom e delicioso café, você está, basicamente, realizando a extração da cafeína.

Como se sabe, a cafeína é uma substância que opera maravilhas em nosso cérebro, tornando nosso raciocínio mais eficiente ao mesmo tempo que gera uma sensação de bem estar. A família da cafeína atua muito bem na parte da memória recente, além de, conforme pesquisas comprovam, manter o coração com batida tão afinada como o de bateria de escola de samba...

Molécula da cafeína em representação 3D.

Molécula da cafeína em representação 3D.

O Companheiro de Viagem Marcelo Ricci, de Blumenau, SC, perguntou qual é a diferença entre preparar o café com água quente e água fria?
Toda essa dúvida foi gerada depois que algumas pessoas lhe comentaram que o café preparado com a água quente contém mais cafeína, enquanto que outras, menos. No caso do Cold Brew, presume-se que tem bem menos, porém muitos baristas falam em números que são muito elásticos.
Afinal, o que é verdade e o que é lenda barista?

Primeiramente, vale a pena rever a origem química da cafeína.
A Cafeína faz parte da grandiosa família das Xantinas, da qual fazem parte também a Teobromina (encontrada principalmente no cacau e que é prima primeira da cafeína) e a Teofilina (presente nas folhas de chá). Por outro lado, a cafeína é, quimicamente, um alcalóide, família de substâncias sintetizadas pelas plantas como agentes de seu sistema de defesa contra pragas e doenças fúngicas.
Pode-se afirmar que todo alcalóide é um veneno, porém, em baixa dosagem pode desempenhar o papel de estimulante.

Na preparação de um café, independente do método, a água é o principal elemento empregado. Portanto, existe uma relação direta entre a solubilidade em água das diferentes substâncias contidas numa semente de café torrada e moída e o que se obtém na xícara, expressando a combinação de aromas e sabores extraídos.
Por outro lado, a solubilidade em água das substâncias é diretamente proporcional à temperatura. Logo, é razoável pensar que a água em temperatura próxima ao seu ponto de ebulição trabalhará de forma mais eficiente na extração dos solúveis do que no caso de temperaturas mais próximas aos 25ºC. 
Para se ter idéia da importância da temperatura da água na extração da cafeína, esta se torna até 30 vezes mais eficiente próximo a 100ºC do que a 25ºC, sempre levando-se em conta que a referência é ao nível do mar.

Partículas de café torrado e moído após extração (aumento de 10x).

Partículas de café torrado e moído após extração (aumento de 10x).

Outro fator que permite obter maior quantidade de cafeína extraída pela água são o tempo de contato e a eficiência de contato. A eficiência de contato é observada no quanto de cafeína o solvente, no caso a água, consegue retirar do interior das partículas sob condições específicas (com agitação, sem agitação, com muita agitação), enquanto que em relação ao tempo de contato, um período mais longo permite se obter maior extrato.

Portanto, uma bebida obtida por Cold Brew deve conter menos cafeína, para um mesmo volume e perfil de moagem, do que uma outra de extração a quente. Mas, o que importa mesmo é que as pequenas fábricas de cafeína continuarão funcionando todos os dias...
Ainda bem!

 

 

Leche de Tigre, caramelo e crema tigrada...

Ensei Neto

Leche de Tigre, Leche de Pantera e variações.

Leche de Tigre, Leche de Pantera e variações.

Leche de Tigre é o saborosamente rico resultado da ação do ácido cítrico do limão sobre pedaços de peixe, principalmente do robalo ou similar de carne firme, combinado com sal marinho e folhas de coentro.
Por vezes coquetel, por vezes "salsa", o Leche de Tigre é muito popular na culinária de Lima, Peru, que se beneficia da generosa porção de águas profundas do Oceano Pacífico e, por isso, com acesso a frutos do mar cheios de sabores personalíssimos. 
Seu primo que também é muito apreciado é o Leche de Pantera, de cor negra, obtido com ostras negras e temperos.
De sabor mais intenso, é uma experiência fantástica. Este é o meu preferido!

A figura do "tigre" também ronda o café...
Entre os coffee lovers que adoram o espresso, uma boa extração deve apresentar o tigramento na crema.
Mas, afinal, e o que é esse tigramento? De que selva saiu esse tigre?

Um espresso bem tigrado... observe quantas estrias escuras mostra esta extração.

Um espresso bem tigrado... observe quantas estrias escuras mostra esta extração.

Bem, tudo começa no processo de torra do café.
Quando se inicia a Etapa Química da torra, uma série de reações químicas acontece e uma das mais importantes é a da quebra do amido que se transforma em Sacarose.  Este é o açúcar de cana que todos conhecem, mas pode ser encontrado também no côco e na beterraba branca.
Importante: a sacarose é o principal ingrediente para se preparar o caramelo.

Você se lembra como se prepara uma calda de caramelo ou mesmo uma crocante capa de um Creme Brullè?
Vamos lá.
Inicialmente, coloca-se o açúcar numa panela sob aquecimento. Em condições normais (sempre a 1 atm ou pressão ao nível do mar), a sacarose tem seu ponto de fusão, isto é, muda de estado sólido para o líquido, a 160ºC. Em seguida há a perda de uma molécula de água de sua estrutura, desencadeando um conjunto de reações que formam um polímero que assume estrutura cristalina quando se resfria, desde que nas mesmas condições normais.
Para facilitar a compreensão, pense que um polímero é como se fosse uma manta formada por diversas peças muito parecidas que se encaixam. No nosso caso, esse polímero é o caramelo.
Interessante notar que tudo se passa em ambiente sem água.

Creme Brullè Nordestino, revisão do genial chef Julien Mercier para o Mocotó, em São Paulo, SP.

Creme Brullè Nordestino, revisão do genial chef Julien Mercier para o Mocotó, em São Paulo, SP.

Ao se resfriar, devido às suas características moleculares, o caramelo assume forma cristalina, como pode ser observado na foto acima, que é uma sobremesa famosa do restaurante Mocotó de São Paulo.

No caso da semente de café que tenha passado por um processo de torra que cuidadosamente permitiu a formação do caramelo, durante a extração, especialmente de um espresso, os filetes marrom escuros nos indicam que a crema terá belos reflexos tigrados!
Para completar, um aroma e sabor notáveis de caramelo se farão presentes na xícara!
Veja este vídeo, captado na Fábrica Café, de Maceió, AL, onde torras muito bacanas estão sendo feitas e excelentes extrações acontecem...

Portanto, o sabor do caramelo é percebido numa xícara de café somente se os grãos forem de excelente qualidade, a torra tenha sido magistral e a extração cuidadosa. Caso contrário, há que se ter um pote de caramelo para adicionar...
Caramelo para todos!!!

 

As origens dos sabores do café - 2

Ensei Neto

Cerejas Descascadas com mucilagem (polpa)

Cerejas Descascadas com mucilagem (polpa)

Ao longo dos 365 dias do ano, existem 4 dias que são particularmente importantes: 21 de Setembro, 21 de Dezembro, 21 de Março e 21 de Junho. Cada um desses dias marca um evento fundamental para compreender como a Natureza e os vegetais trabalham. Agrupados dois a dois, temos os Solstícios e os Equinócios.
Considerando-se os dois hemisférios que a linha do Equador perfaz, tem-se a seguinte sequência para o Hemisfério Sul: 21 de Setembro, Equinócio da Primavera; 21 de Dezembro, Solstício do Verão; 21 de Março, Equinócio do Outono; e 21 de Junho, Solstício do Inverno. Para o Hemisfério Norte, basta antecipar 6 meses cada Estação em relação ao Sul, iniciando-se a Primavera em 21 de Março, o Verão em 21 de Junho, o Outono em 21 de Setembro e o Inverno em 21 de Dezembro. 
Os dias considerados Solstícios marcam, respectivamente, o Dia Mais Longo do Ano, início do Verão, e o Dia Mais Curto do Ano, início do Inverno. 

O Ciclo Fenológico ou das Frutas do cafeeiro seguem o calendário anual, independentemente do local das lavouras, isto é, sempre o início acontece na Primavera, quando as flores permeiam as plantações de perfumada brancura e indicam que a nova safra está se moldando. No Verão, os frutos ganham massa, definindo o tamanho das sementes que predominarão nos futuros lotes, garantidos por generosa quantidade de chuvas e luz em abundância. O Outono, que marca também o momento da colheita, é o tempo em que as frutas amadurecem, resultado da formação dos açúcares previamente definidos pela carga genética de cada planta.

Uma vez colhidos os frutos e suas sementes corretamente secas, temos a matéria prima para iniciar uma outra fase. Vimos que nesta primeira fase são formados exclusivamente substâncias que contribuem com dois Sabores Básicos: o Ácido e o Doce. 
Se você observar a estrutura de um fruto do cafeeiro, apesar de apresentar uma polpa com boa quantidade de açúcares em sua composição, a principal protagonista é a semente, que representa metade da massa da fruta. 
Fica claro que, no caso do cafeeiro, a Natureza potencializou o uso da semente em relação à casca externa e à polpa, tal qual na brasileiríssima jabuticaba. Fazendo-se comparação com uma uva vinífera, esta tem proporcionalmente muito mais polpa do que a semente em peso; portanto, usar a aquosa e açucarada polpa para fermentar e produzir incríveis vinhos é a aptidão que a Natureza lhe concedeu. 

Tanto a uva quanto a fruta do cafeeiro tem na polpa composição muito semelhantes, com açúcares, minerais e água, muita água, que, uma vez isoladas da planta, podem iniciar um processo fermentativo anaeróbico. 
A casca externa dessas frutas funcionam como a nossa pele: não permitem que o conteúdo interno saia aos borbotões, assim como são altamente seletivas quanto ao que pode atravessar a partir do lado externo.

O ar está cheio de vida, dada pela incontável quantidade de microorganismos que pululam por todos os lados. Esses microorganismos são pequenos o suficiente para atravessarem a casca externa através de seus poros, e assim começarem a trabalhar na rica composição da polpa. Cada microorganismo possui capacidade de adaptação e de trabalho a diferentes concentrações de determinadas substâncias como, Açúcares Primários ou Monossacarídeos como a Frutose, Galactose e a Glicose. 

Flora microbiana sobre a casca do fruto do cafeeiro

Flora microbiana sobre a casca do fruto do cafeeiro

Existem microorganismos especializados em realizar a decomposição de açúcares de cadeia longa, como o Amido, em pequenas frações ou monossacarídeos; outros, por exemplo, realizam a conversão dessas moléculas em outras de características químicas bastante diferentes. 
Um bom exemplo, é o que acontece com a fermentação da uva vinífera. Um microorganismo converte os açúcares de cadeia longa da polpa num mar de Glicose, que, através do trabalho de outra levedura, transforma esse monossacarídeo em álcool. 
A fruta do cafeeiro quando atinge o ponto de madura, desliga-se da planta, interrompendo o fluxo da seiva através do fechamento dos dutos de saída que ficam junto ao pedúnculo. Assim sendo, forma-se um sistema fechado, que tem um rico caldo açucarado com microorganismos em ambiente sem oxigênio. Nessa condição conhecida por Anaeróbica, os monossacarídeos formados começam a ser trabalhados por enzimas produzidas por algumas classes de leveduras, cada qual com objetivos bastante específicos. 

Regidas pelas leis naturais, classes de reações com baixa demanda energética são seguidas de outras com maior demanda. E assim por diante. Como resultado, são formados inicialmente moléculas com características florais, seguidas das frutas amarelas e vermelhas, antes de se perceber a nota de mamão papaya, que é indicador do limiar entre o Bem e o Mal. Entenda-se o Mal como o início do apodrecimento, que leva inicialmente ao sabor medicinal semelhante ao da Dipirona ou, como conhecido pelos classificadores de café, Bebida Riada.

Fruto apodrecido contaminando outros

Fruto apodrecido contaminando outros

A polpa da fruta do cafeeiro, concluindo, tem papel fundamental para originar notas de aromas e sabores como florais e frutados, moléculas que são formadas exclusivamente após o início da Senescência. 
Sementes que passarem por cuidadoso processo de secagem, garantem esses aromas após a torra, incorporando-se com outras decorrentes dessa nova etapa.

 

Subtropical, Serjão, Subtropical! – 1

Thiago Sousa

23º 27’.

Grave bem esse número!

Ele nada mais é do que o ângulo correspondente à inclinação da Terra em relação ao seu Eixo Norte-Sul. Essa inclinação é um fantástico truque da Natureza para criar um fenômeno chamado Estações do Ano!

Primavera, Verão, Outono e Inverno. Determinadas também pelo movimento de Translação do nosso planeta e que cria a percepção do Ciclo Anual em que se baseia o Calendário Gregoriano e seus 12 meses.

Caso essa inclinação da Terra não existisse, esta giraria em torno do Sol sempre com o mesmo alinhamento, de forma que o Equador corresponderia ao ponto de maior insolação de forma muito mais concentrada, enquanto que os pólos continuariam extremamente frios, porém sem o famoso efeito do Sol da Meia Noite, que acontece uma vez por ano.

O fato é que esse ângulo também corresponde à localização das linhas dos Trópicos de Capricónio e Câncer. Só para lembrar, o Trópico de Capricórnio passa na Grande São Paulo.

Assim, quanto mais distante da linha do Equador, mais evidentes são as Quatro Estações do Ano, principalmente entre as linhas dos Trópicos e dos Círculos Polares.

O cafeeiro foi descoberto nas florestas da Etiópia, onde parte de sua produção ainda continua da mesma forma, em modelo extrativista. Daí seguiu para o Yemen, onde começou o seu cultivo sistematizado. Logo, os yemenis descobriram que os locais mais adequados eram as suas regiões montanhosas, como Haraz (na foto ao lado) e Jabal Bura, entre estonteantes 1.800 m e 3.000 m de altitude. Se recordarmos um pouco das aulas de geografia climática, no Brasil existe uma faixa que tem o predomínio do Clima Subtropical de Altitude, tendo as Serras da MantiqueiraÓrgãos e Caparaó como eixos principais, além de um outro que segue em direção a Poços de Caldas. Sabe-se que, num determinado local, subir 100 metros em altitude em geral observa-se uma queda da temperatura por volta de 0,7º C. Em regiões de montanha, por vezes encontram-se variações de até 500 m de altitude, o que levaria a uma variação de temperatura em torno de 3,5º C. Isso tem grande impacto, sim, em qualquer tipo de planta!

Segundo os botânicos, as plantas podem ser agrupadas a partir de sua capacidade de adaptação ou de como seu metabolismo responde a determinados estímulos climáticos. O cafeeiro, por exemplo, é uma árvore frutífera cujos frutos tem um ciclo, que vai de sua florada até quando maduros, determinado inclusive pelo clima da região onde é cultivado. Isso acontece também com outras frutíferas, como a videira e a macieira.

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A região do Vale dos Vinhedos, no Rio Grande Sul, é reconhecida hoje pela qualidade de seus vinhos brancos, principalmente de uvas Chardonnay, e dos excepcionais espumantes, de tão boa estirpe quanto os vinhos franceses. Porém, essa vocação levou certo tempo para ser compreendida pelos produtores e técnicos da região, que tinha como propósito inicial a produção de castas vermelhas como o Merlot e Cabernet Sauvignon.

Para felicidade de todos, houve essa importante correção de rota, seguindo em direção às belas uvas brancas, e grande espumantes brasileiros já borbulham em muitas taças mundo afora.

Portanto, observar o conjunto que compõe um território é decisivo para compreender porque uma determinada cultura se impõe pela excelência de seus produtos.

Esse caso é emblemático para entender o que se passa com o café.

Uma delicada discussão sobre a acidez – 1

Thiago Sousa

No final da semana passada tive uma boa discussão com o Companheiro de Viagem Christian Rotsko,da Barefoot Coffee, de San Jose,  sobre a Acidez.

Provamos diversos cafés ao longo de 2 dias em 5 sessões, onde haviam tanto cafés com preparo de secagem como Cerejas Descascadas (CD) como com cascas, os Naturais. Dentre os Naturais, estavam o que denomino de verdadeiros Naturais, ou seja, cafés colhidos como cerejas, em sua plena maturação, e secos com a casca. Eu havia selecionado cafés de dois produtores que considero exemplares. Outra preocupação foi a de apresentar a sequência de um trabalho iniciado em 2009, quando alguns lotes de CDs e Naturais eram os chamados Gêmeos ou Twin, pois eram originados de uma mesma lavoura e variedade, sendo, no momento de passar pelo lavador, separados para parte ter sua casca externa retirada, enquanto que outra, teve as cascas preservadas.

Ao final do primeiro dia, ele me perguntou, espantado, porque alguns lotes de Naturais estavam mais ácidos do que os de CDs. Afinal, ele tinha a convicção de que os cafés CDs sempre apresentam maior acidez do que os Naturais.

Respondi que, na realidade, esse conceito não funcionava no Brasil, pois essa diferenciação somente é notável quando alguns grãos são preparados pelo método Fully Washed (= Despolpado em Tanques com Água), rarissimamente empregado por aqui.

Haviam 2 grupos de Gêmeos, um com a variedadeMundo Novo e outra com a Catuaí Amarelo 62.

A primeira dupla, com  Mundo Novo, estavam muito equilibrados com intensa doçura, demonstrando que a colheita foi feita no momento correto. Ao se fazer a comparação, as xícaras de grãos de processo Natural apresentaram uma acidez um pouco mais intensa, ainda que discreta, do que o CD, o que fez com que o Christian iniciasse o questionamento.  A explicação é simples: a acidez independe de método de preparo de secagem, seja Natural ou CD, exceto se for um Fully Washed. A acidez, nesse caso,  é da natureza do grão, dependente principalmente de fatores de “terroir” a que as plantas se submeteram ao longo da safra. Ou seja, se forem de uma mesma lavoura, de uma mesma variedade, é de se esperar que a acidez seja a mesma caso os frutos sejam secados com ou sem a casca externa.

Ao compararmos as xícaras de Natural e CD do Catuaí Amarelo 62, ambos apresentaram uma acidez equivalente.

As duas lavouras estavam dispostas como vizinhas,  o que faz imaginar que o terroir é o mesmo para as duas variedades. O que causa uma discreta variação no resultado é o fato de que o Catuaí Amarelo é mais precoce do que o Mundo Novo, ou seja, ele acaba atingindo a maturação dias antes para a mesma floração.

No caso do Descascado Despolpado (= Fully Washed) os grãos descascados ficam mergulhados em água durante 24 a 30 horas, em pH que permite a ocorrência de diversas reações bioquímicas, que tanto podem realizar a retirada da mucilagem que recobre o chamado pergaminho, como formar oÁcido Lático, que aumenta consideravelmente a acidez na bebida. Esta é a razão porque os cafés colombianos, centro americanos e alguns africanos, quando despolpados, apresentam uma acidez tão elevada na xícara!

Ou, apresentavam, pois com a adoção de processos de despolpamento mecânico como no Brasil, até por pressão de certificadoras internacionais e de ONGs de preservação do Meio Ambiente, a acidez dos cafés de alguns desses países, nos dias de hoje, já não é tão alta.